A COISA

Vasco Pinhol

Publicado em Revista Visão
NÓS LÁ FORA
26.12.2019 às 12h40

O ano da graça de dois mil e dezanove está nas últimas e veio-me à memória que há exactamente um ano e há exactamente dois anos ouvi a muitos, quase todos, a mesma coisa que oiço agora : “um ano para esquecer”.

Não sei se percebo, e não subscrevo. Queixumes sobre um ano que passou é coisa que não me assalta. Sobre a cabeça de todos os que ainda cá andam pende uma espada de Damócles que irá, mais cedo ou mais tarde, cair e acabar com a festa. Dá pelo nome de morte e opino aqui e agora que é um grande motivador para viver em profusa gratidão de estar vivo. Na nossa vida – uma actividade que invariavelmente acaba mal – mesmo os piores anos são sempre uma excelente alternativa. Estar morto é desagradavelmente frio, imóvel e redutor.

Importa, de qualquer forma, falar da coisa. A coisa é a dissonância cada vez maior entre a vida e o que se pensa dela, porque o que se pensa dela é formulado em termos de perspectiva e a perspectiva é sempre uma interpretação e não uma realidade. A coisa – falo desta coisa negativa que avança a passos largos atropelando a vida de todos – entra quotidianamente em choque com o bom-senso e, invariavelmente, ganha. A coisa imiscuíu-se em tudo; começou por ser cuspida de fininho pelo canto da boca dos comentadores de café mas ganhou dimensão avassaladora quando os media, que eram quem antes punha tento na coisa, perderam orçamentos e descartaram o tino na busca de cliques, porque as contas passaram a ser pagas a 0,00002 cêntimos por clique e só o medo, a morte, o sexo, o estrondo, o estalo põem as pessoas a clicar. O jornalismo é caro. É caro demais. A idade da informação foi substituída pela idade da opinião. As pessoas prestam mais atenção à coisa dita com amargo e arrepio.

 

As crianças pensam que o mundo vai acabar. No Brasil, os bolsonaristas chamam à Europa “república-islâmica-da-europa”. O Amazonas, a Suécia, a Califórnia, a Austrália, está tudo a arder. O Pólo-Norte está a derreter, os ursos brancos afogam-se. Os americanos matam-se uns aos outros nas escolas e nos centros comerciais. Não há dia que não traga notícias desoladoras. As crianças pensam mesmo que o mundo vai acabar. No outro dia ao jantar estávamos a conversar sobre… coisas e a conversa foi coartada pelo meu filho de 14 anos com um lacónico “de qualquer modo não importa, porque o mundo vai acabar daqui a seis meses…” – o assunto na aula de ciências tinha sido que o planeta ia entrar, daqui a seis meses, na fase em que os gastos passavam a ser maiores que os recursos. É a coisa.

E contudo cá estamos. Mais um Natal. Tão bom que é o Natal. Dança-se à volta da árvore, bebe-se e come-se sem descanso, dão-se e recebem-se presentes. As gerações coabitam temporariamente defronte do perú. Reina a boa-vontade entre os que não são trolls. Vêem-se filmes estúpidos, engorda-se, lá fora chove e faz frio, calçam-se meias grossas. As compras de última hora. Os chocolates. Por aqui, a neve. As luzinhas-de-natal, as músicas-de-natal. Um pai-natal em cada esquina.

É que esta coisa – que parece tão definitiva e terminal – existiu sempre. Pensem na coisa de 1939, com Hitler e Estaline, ou na coisa de 1812, com Napoleão. Ou em inúmeras outras alturas da história da humanidade em que a coisa foi mais grave. É que a maior diferença está mesmo na forma como olhamos para a coisa. Quando temos muito, tudo parece pouco. Quando temos pouco, tudo parece muito.

Vasco Pinhol, Dezembro de 2019