AALESUND, NORUEGA Os media têm um longo historial de relação complexa e delicada tanto com o poder vigente como com o seu próprio poder. Não se aperceberam, com o pânico da reconfiguração do mercado de imprensa e o advento da Internet, que a sua função de informar de forma generalista deixou de ser exclusiva – aceitaram com alegria o presente envenenado do “cidadão repórter”, sem custos, sem antecipar que o “cidadão repórter” teria eventualmente vários meios de distribuição ao seu serviço, também sem custos, através dos meios sociais.
Ultimamente parece haver uma espécie de concurso para primeiro prémio de justificativos para a neurose. E afinal parecia tudo tão bem orientado a seguir à II Guerra Mundial. Na natureza humana, os pendentes para a melhoria são todos fáceis de aceitar e digerir – são os retrocessos que nos confundem e alarmam. O mais recente retrocesso – a eleição de um homem sem valores éticos nem humanísticos para o mais importante cargo do planeta – tem feito correr muita tinta, maioritariamente preocupada com a hipótese de vir a fazer correr muito sangue. Aqui na Noruega, como em Portugal e em todos os pontos do mundo civilizado, a preocupação é muita; entre análises do que aconteceu e prognósticos para o que estará para acontecer, o bombardeamento mediático é enorme e tem dado muito que pensar.
Nos últimos 50 anos o processo civilizacional mais universalmente relevante tem sido a miniaturização. Miniaturizámos tudo, as distâncias, o tempo, a paciência, o computador, o telemóvel, as bibliotecas, a memória colectiva, os acessos às instituições, o tempo. E miniaturizámos também outras coisas. A guerra, por exemplo. No início do século XX, só os grandes países podiam dar-se ao luxo de entrar em guerra porque era necessária uma enorme disponibilidade de recursos, em armas e em exércitos e em capacidade de os manter. Hoje em dia, a miniaturização das armas permite que qualquer pequeno grupo consiga mobilizar recursos de destruição impensáveis há 50 anos. Antigamente, um terrorista armado de um bacamarte de carregar pela boca matava um incauto e ficava-se por ali porque os restantes incautos tratavam-lhe do sebo. Hoje em dia, um par de terroristas armados de metralhadoras dão cabo de uma enormidade de vidas numa cidade. Como, além disso, miniaturizámos o acesso à informação, bastam dois cliques na net para aprender a construir bombas ou criar armas biológicas e químicas.
De modo idêntico, miniaturizámos os processos de informação e a sua distribuição – há 50 anos só um grande grupo de media se podia dar ao luxo de pôr na rua notícias; o jornalismo tinha qualidade porque não fazia sentido gastar tanto dinheiro a escrever inconsequências. Hoje em dia basta um teclado e uma ligação à net e mesmo o mais miniaturizado intelecto tem acesso instantâneo e quase directo à população do planeta. Não há controlo de qualidade nem motivação para a verdade e há um total descontrolo do seu resultado sobre as hostes.
O mais inesperado na eleição de Trump não é que tenham votado nele, mas que os media – o suposto quarto poder – o tenham criado e, ao se aperceberem da gravidade da brincadeira, não tenham tido a capacidade de o suprimir. Pessoalmente, tal como qualquer outro tonto nascido na década de 60, alimento a crença de que os políticos podem ser malucos mas que a imprensa estará sempre disponível para nos salvar. Nestas últimas semanas multiplicaram-se os artigos em que os media procuraram validação na história: muitos revisitaram Watergate e Nixon, em quase todas as línguas que sei ler; se por um lado o seu excelente pedigree é mais longo –- foram os “news-reels” sobre a invasão alemã que galvanizaram a população americana para intervir na Europa – convém também não esquecer que, no final do séc. XIX, as guerras de audiência entre dois jornais sensacionalistas de Nova Iorque (um de Pulitzer e outro de Hearst) conduziram à Guerra Hispano-Americana, mudando para sempre a história dos EUA, de Espanha, Cuba, Puerto Rico, Filipinas, Guam, e a história de todos nós, ao assinalar a entrada da América no Norte na geoestratégia planetária. Então, tal como agora, não foram as opiniões contrárias de intelectuais adorados (Mark Twain escreveu vários artigos sobre o assunto) que alteraram o rumo desta história.
Os media têm um longo historial de relação complexa e delicada tanto com o poder vigente como com o seu próprio poder. Não se aperceberam, com o pânico da reconfiguração do mercado de imprensa e o advento da Internet, que a sua função de informar de forma generalista deixou de ser exclusiva – aceitaram com alegria o presente envenenado do “cidadão repórter”, sem custos, sem antecipar que o “cidadão repórter” teria eventualmente vários meios de distribuição ao seu serviço, também sem custos, através dos meios sociais. Tal como nós fomos condicionados para acreditar na verdade implícita do que é publicado pelos media, os media acreditaram piamente na ficção insustentável de um “cidadão repórter” que tem boas maneiras, é educado e vigil, inteligente e bem intencionado. A eleição de populistas que vemos agora por esse mundo fora alimenta-se deste choque entre a realidade que os media procuram desesperadamente transmitir, e a ficção que os auto-proclamados “líderes de opinião nos meios sociais” procuram alegremente disseminar. A julgar por estes últimos meses, não será com mais informação e mais análise que se ganhará esta batalha.
Do mesmo modo que a guerra contra o terrorismo não pode ser ganha com mais exércitos nacionais mas sim com mais polícias locais e mais intervenção à escala individual, também não será com mais verdade factual ou análise intelectual que a guerra contra a desinformação poderá acabar a bem. Os media podem, contudo, reorganizar recursos e dedicar parte dos seus meios a descobrir e tornar pública a malícia e estupidez dos produtores de notícias falsas. A grande informação é importante mas consome-se diariamente de forma grátis na net.
Como cidadão da netlândia internacional, custa-me um bocadinho ver recursos dispendidos diariamente em notícias que são repetições traduzidas do que já li noutras línguas, mas custa-me ainda mais ligar o Facebook e deparar com um monte de histórias inventadas sem que ninguém ponha a descoberto a maliciosa estupidez do seu inventor – neste novo paradigma não chega dizer que é falso, é também fundamental publicitar que o responsável pela notícia falsa, antes de gerir o seu novo e influente website político-informativo, ganhava concursos de arrotos, batia nos filhos e na mulher, vendia drogas na rua e agora inventa notícias para ganhar dinheiro, a 0,00003 cêntimos por clique. Neste momento o valor acrescentado da imprensa talvez esteja em investigar as fontes individuais de informações falsas e destruí-las no ponto de origem. Milhões de americanos bons foram enganados maliciosamente por energúmenos com o nível intelectual e ético de um piaçaba. Isto aconteceu porque entregámos a estes energúmenos a chave da credibilidade sem contraditório.
A história das últimas eleições nos EUA foi definida por profissionais da ficção disfarçada de realidade. Parece-me que destruir a credibilidade dos parvos é a única forma de combater a miniaturização da parvoíce, uma coisa pequenina mas com efeitos devastadores.
Conselhos de crianças norueguesas a Donald Trump: “Pensa antes de abrir a boca, o que dizes pode ter consequências”; “Não digas coisas feias sobre as mulheres e tem atenção às crianças”; “Não sejas racista”; “Não faças só o que queres, ouve os outros”.
Nota: esta semana o Diccionário Oxford definiu “post-truth” como a palavra do ano de 2016. (Pós-verdade : denotando circunstâncias em que os factos objectivos são menos influentes na formação da opinião pública que os apelos à emoção e à crença pessoal.)