AALESUND, NORUEGA – Anseia-se aqui por um bocadinho de luz. Não é só porque o sol se põe às 3 da tarde, é também porque só nasce perto das 11 da manhã. Para piorar, os noruegueses não acreditam muito em iluminação de qualidade e os escritórios são tipicamente iluminados por luz de tecto esverdeada e doentia, que reveste tudo o que (mal) se vê com uma camada fininha de vómito bilioso
Wim Wenders dizia-se apaixonado pela luz de Lisboa; percebo-o melhor agora por viver na Noruega – que é a mesma coisa que viver a norte de tudo – e por saber que o ódio que um europeu do Norte vota secretamente ao Inverno só pode desaguar numa enorme paixão por Lisboa e pela sua luz.
Cheguei a Ålesund e ainda estou com os olhos meio-cheios da luz de LX. Ålesund fica a 62 graus de latitude Norte – nesta altura do ano os mais dos dias são vividos basicamente às apalpadelas. Mesmo nos dias de céu azul adivinha-se o sol sem o ver, porque passa no horizonte abaixo da linha das montanhas que delineam o fjord onde a cidade está aninhada.
Se se quer ver o sol, é preciso subir às montanhas – mas para subir às montanhas é preciso fazer alpinismo no gelo porque acima dos 400 metros de altitude tudo está gravemente coberto por neve.
Entretanto anseia-se aqui por um bocadinho de luz. Não é só porque o sol se põe às 3 da tarde, é também porque só nasce perto das 11 da manhã. Para piorar, os noruegueses não acreditam muito em iluminação de qualidade e os escritórios são tipicamente iluminados por luz de tecto esverdeada e doentia, que reveste tudo o que (mal) se vê com uma camada fininha de vómito bilioso. Dentro das casas, por aqui, há uma aparente fixação mórbida por focos de tecto de 15 W com controlo de potência alinhada pelo mínimo – o que deixa a vida quotidiana encostada a uma penumbra silenciosa que convida à introspecção auto-flagelante. Uma pessoa dá por si a pensar em merdas chatas que aconteceram há 15 anos, e passeia-se sem tino a tropeçar nos móveis; durante o Inverno costumo andar com as canelas cheias de nódoas negras.
O breu é tal na rua que não se pode passear o cão sem reflectores, sob pena de ser atropelado. Durante o Inverno o perigo de ser atropelado aumenta exponencialmente, não só porque todos moramos no coração da escuridão, mas também porque a maioria dos condutores andam suspensos numa espécie de limbo entre a vida e a morte intelectuais – que é conhecido por “winter mood” – e, consequentemente, os tempos de reacção diminuem para os níveis da incapacidade motora. A isto soma-se uma transmutação frequente das estradas em ringues de patinagem no gelo para carrinhos e, se por um lado a vida é mais pacata porque anda tudo a dormir em pé, por outro uma simples ida à mercearia da esquina transforma-se numa actividade perigosa que deve ter uma abordagem técnica que inclua um plano B com passagem pelo hospital. No outro dia, à porta da casa de uns amigos que vivem numa rua íngreme, atravessei a rua de quatro, com duas garrafas de vinho na mão; sei que se fizer estas figuras em Portugal, chamam a polícia.
Socialmente, o ambiente torna-se esquizofrénico: metade da população reage à falta de luz com uma alegria acintosamente maníaca, falando mais alto, rindo de coisas estúpidas, movendo as mãos e o olhar de forma exagerada, e a outra metade desliga por completo o sistema e entra numa espécie de hibernação mental. Durante o Inverno as conversas ao telefone tornam-se divertidamente alquebradas: é comum ter de repetir três vezes a mesma coisa para ser percebido, é comum ter de ouvir três vezes a mesma coisa para perceber. Não é raro receber telefonemas de amigos que me dizem “olha, telefonei-te mas esqueci-me do que queria dizer…”.
Anoitecer às 3 da tarde tem efeitos inesperados sobre o relógio biológico: às 4 e meia o corpo pensa que é hora de jantar, às 7 e meia a cabeça pensa que são duas da manhã, às onze da noite já ninguém sabe quem é, de onde vem, ou para onde vai. O quarto passa a ser a divisão principal da casa, a sala tem mais luz na televisão do que nas janelas. A nossa casa é a excepção da nossa rua – para contrariar este mísero estado de sítio, usamos iluminação de estúdio que emula em todas as paredes os dias radiosos da luz de Lisboa.
Vivemos numa espécie de bunker de luz, à espera do fim desta guerra sazonal de escuridão – sabemos que quando passarmos a fasquia de Fevereiro, a natureza e os noruegueses acordam subitamente para a vida e viver-se-à então a outra face da moeda. A noite vai desaparecer lentamente, até desaparecer por completo. Nessa altura o sol e as pessoas perdem o botão de “off” e fico a aspirar pelas noites escuras de Lisboa. Socorro!
Vasco Pinhol, Dezembro de 2017